“A arte é tornar visível o invisível” Paul Klee
Gosto de viajar, sair por este mundo afora, como diz Zeca Baleiro. “Barco sem porto, sem rumo, sem vela, cavalo sem sela, um bicho solto, um cão sem dono”. Viajar nos leva a conviver com novos hábitos, costumes e faz com que a gente entre em contato com outras culturas, e ter contato com outros costumes permite que a gente aceite o outro como ele é, ajuda a lidar melhor com as diferenças.
Estive recentemente no Centro Oeste, fui à pirâmide da LBV, Vale do Amanhecer. Percebi que de todas as regiões brasileiras a que mais possui templos, religiões alternativas é o Centro Oeste. Percebi também, que o Planalto Central é uma região que não possui um estilo próprio de ser, como ex: Existe o jeito Baiano, Carioca, Paulista, Mineiro, etc..
Ouviu algumas histórias místicas para a construção do Planalto Central. A 1ª seria de que Dom Bosco teve premonições de uma terra prometida, abençoada e diferente e JK seguiu esta ideia, a 2ª seria de que JK seguiu a teoria de que caso ocorresse o fim do mundo o Centro Oeste por sua tipologia seria o único local a sobreviver.
Aproveitando o momento ecumênico compartilho e convido o leitor a refletir sobre alguns trabalhos da 31ª Bienal Internacional de arte de São Paulo, que na época causou grande furor nas redes sociais, e todas as vezes que toco neste assunto com as pessoas, elas quase me batem! Estas obras são vistas com estranhamento, eis que mistura iconografia cristã e material pornográfico.
Mas o trabalho que mais me chamou a atenção e quero convidar o leitor a refletir sobre o assunto é o documentário sobre Sergio/ Simone, um homem com dupla personalidade de pastor evangélico, a travesti candomblecista.
Sergio/Simone desafia a questão de uma sociedade Binarista que exige que sejamos uma coisa ou outra. No entanto, temos uma religião predominante que é católica, e de outro lado temos uma religião com hábitos distintos, mais os mesmos santos, ex: São Jorge/Ogum, Santa Bárbara/Iansã, pensem nisto.
Travestis e religião na Bienal da Arte
Márcia Pantera, 44, frequenta cultos evangélicos, missas católicas e terreiros de macumba. “Quando vou a qualquer igreja, vou procurar Deus.”
Carlos Márcio, 44, casado com Kennedy há 13 anos, não acredita “nesta coisa de ex-gay”. Não que não ponha fé na vida: foi batizado e crismado na Igreja Católica, “toda aquela palhaçada de quando a gente coloca a roupinha de menininho branco”.
Márcia Pantera com figurino inspirado no líder religioso de ‘Inferno’ (Gabriel Cabral/Projetor)
À noite, ela dá um tapa na Márcia Pantera, seu nome artístico: pinta os olhos com contorno bem escuro, ajeita a peruca loira estilo “Beyoncé com ventilador na cara”, sobe no salto alto até pular de 1,85 m para 2 m e canta Madonna em seus espetáculos. Comemorou 26 anos de carreira na quarta-feira (18), na boate LGBT Blue Space, no centro de São Paulo.
Durante o dia, ele divide uma casa em Brasilândia com tio, prima, irmão e marido. Dirige sua scooter branca Cyticom 300i cinco dias por semana para chegar em Santana, zona norte da cidade, onde trabalha como vendedor numa loja de sapatos, bolsas e acessórios.
Os dois viraram um só no final dos anos 1980. Márcio era o jogador de vôlei com corpão de atleta que, após ver o show de uma travesti com cabelão até a cintura, começou ele também a se cobrir de brilhantes e lantejoulas.
Nasceu aí o alter ego Márcia Pantera, uma das drag queens mais famosas da noite paulistana, musa do estilista Alexandre Herchcovitch –que conheceu na porta da Nostro Mondo, lendária boate na rua da Consolação onde Adriane Galisteu já foi confundida com uma drag queen.
“Por trás da drag, existe o Márcio, que é religioso, ou o que seja”, diz.
Religiosos ou o que sejam, Márcio e seu alterego foram convidados para viver o papel principal no filme “Inferno”, do artista israelense Yael Bartana.
Com maquiagem da Pantera, ele encarna um líder religioso com ares e vestes papais, num simulacro do templo bíblico de Salomão que a Igreja Universal do Reino de Deus constrói no Brás, em São Paulo (o original foi destruído duas vezes em Jerusalém, antes de Cristo nascer, e nunca mais reerguido).
A obra promete polêmica: simula a completa destruição do templo de 74 mil m² que virou xodó do bispo Edir Macedo. O líder da Universal chegou a prometer não cortar a barba até a abertura da construção salomônica, marcada para 31 de julho, com presença da presidente Dilma.
“Inferno” será exibido na Bienal de Arte de São Paulo, que começa em setembro, na semana seguinte à inauguração da nova igreja.
Em 2014, a mostra levanta a bandeira “TTT”: “transgressão”, “transcendência” e “transsexualidade”. A curadoria selecionou artistas que trabalhem tanto com a diversidade sexual quanto com a profusão de crenças religiosas na atualidade.
“Isso é algo que resume nossa condição contemporânea”, disse o britânico Charles Esche, curador da Bienal, em entrevista à “Ilustrada”. “A arte nos mostra que essa absoluta dicotomia entre masculino e feminino não reflete a forma como nós, de fato, experimentamos a realidade”.
E, nesse sentido, o filme de Yael Bartana cai como uma das luvas que Márcia Pantera certamente usaria em seus espetáculos, de preferência com veludo. Para a drag protagonista, ao demolir de mentirinha o templo religioso, a artista israelense simbolizou a derrubada de preconceitos na vida real.
“Acho que o preconceito da igreja evangélica é demais da conta. Se eu morrer e nascer de novo, quero vir exatamente como eu sou. Gay que seja. Sou feliz assim”, diz Márcia.
O PASTOR E A TRAVESTI
A obra da brasileira Virginia de Medeiros é outro retrato dessa tensão entre religião e identidade sexual.
No filme “Sérgio e Simone”, também escalado para a Bienal, ela conta a história de Simone, travesti, e Sérgio, sua versão masculina que virou pastor evangélico.
Após uma experiência de quase morte, ele se transforma num “pregador fanático”. Mantém, no entanto, desejos da época em que usava peruca e vestidos curtinhos na Ladeira da Montanha, área degradada da velha Salvador (BA).
Virginia acredita que o sistema binário de macho e fêmea não se aplica mais, e que o pastor e a travesti nunca poderão ser água e azeite, por mais que ele assim o deseje.
Hoje, Sérgio lidera a Igreja do Mistério ou Rêtêtê, que está surgindo no subúrbio da Bahia. Os missionários de Sérgio são da turma dos “ex”: ex-presidiários, ex-traficantes, ex-prostitutos, ex-viciados em crack e ex-gays.
“É a África ancestral com a Bíblia em punho”, afirma Virginia. “Sincretismo entre o candomblé e o evangélico. Muito transe, incorporação e testemunhos de fé.”
EX?
“Tenho amigos que se dizem ex-gays”, diz Márcia Pantera, pouco antes de ensaboar seu rosto e esfregar bastante a toalha até remover a maquiagem e virar Carlos Márcio novamente.
“Ex-gays?”, questiona em seguida, levantando a sobrancelha desenhada com lápis preto. “Ex-estuprador? Ex-traficante? Será que são ex? Será que eu vou querer casar com uma mulher, ela sabendo que eu sou ex-gay? Será que se passar um cara do meu lado eu não vou olhar pra ele?”
Na cozinha da prima, Márcia (ainda montada) conta que, de vez em quando, vai a igrejas evangélicas, para se sentir mais próxima de Deus. Mas tampa os ouvidos se o pastor começa a falar para mudar sua orientação sexual ou o modo como se veste.
Conta já ter ido à mesma Igreja Universal que vai inaugurar o templo destruído em “Inferno”. E que a visita não foi nenhum paraíso para ela.
“Me senti acuada. Primeiro, tem que estar vestidinho pra entrar na igreja. Aí você vai para a igreja e o pastor vai falar: se acreditar em Deus, vai levantar agora. Levanta e anda! Eu já sabia daquilo. Da força que tenho para levantar e andar”, diz.
“Eu tenho um Deus que é muito verdadeiro na minha vida. Em qualquer lugar, dentro de um ônibus lotado, posso estar conversando com Ele.”
Fonte= Excerto retirado do texto da Folha de São Paulo por Anna Virginia