Era uma vez um rei que tinha tudo: dinheiro, saúde, família, prestígio. Um revés do destino, contudo, o levou a ficar sem nada, ser banido do seu reino e vagar como um mendigo.
Apenas um cachorro lhe fazia companhia e permaneceu ao seu lado nos momentos mais difíceis, de fome e sede.
Certo dia, o andarilho chegou a outro reino, onde finalmente foi reconhecido e amparado com oferta de roupas limpas, cama, banho e comida farta.
A única condição para cruzar o portão do palácio era que o vira-lata ficasse de fora. “Sem o cão eu não entro”, anunciou o homem, pronto a perder tudo mais uma vez.
Ao testemunhar tal posicionamento, o soberano o admitiu: “Era justamente esta resposta que eu esperava ouvir de um nobre”.
Há algumas versões desta história, mas ela ilustra a lealdade como prova de caráter que habita o nosso imaginário. Um belo comprometimento, merecedor de aplausos.
A questão é o que ou quem merece de fato a nossa fidelidade e até que ponto esse comprometimento se justifica. Uma vez que, em algum ponto da jornada, a verdadeira fidelidade pode depender de uma transgressão.
Eis que para sermos fiéis aos nossos valores mais caros e seguirmos crescendo temos que ser desleais a certas ideias, pessoas ou instituições.
Para o rabino Nilton Bonder, há momentos em que a traição é da ordem da transcendência, ou seja, pensar de forma mais ampla.
A fidelidade hipócrita é um compromisso com o passado que obstrui o presente e o futuro, ele sublinha na obra A Alma Imoral.
O que ele quer dizer é que às vezes precisamos desconstruir nossa velha morada para que possamos erguer uma casa nova, maior e mais bem ventilada.
Ou seja, nem toda deslealdade é uma puxada de tapete . Nem toda deslealdade é uma ferida aberta no peito de alheio. Às vezes é necessária uma guinada de rumo. Do contrário compactuamos com a nossa própria estagnação.
Outrossim, aquele que é leal não deve nutrir uma lealdade cega. Não devemos ser leais a um chefe corrupto ou a uma conduta reproba.
E ocasionalmente a desobediência a alguém, a um voto ou mesmo as leis estabelecidas se faz necessárias, quando esse pacto passa a nos apequenar ou ferir nossos valores.
E por fim, quanto mais leal ao seu coração, mais livre a pessoa se torna, pois pode ser aquilo que ela é integralmente. Um ser capaz de dizer: “Sem o cão eu não entro.”
“É preciso um mergulho fundo na alma para analisar se aquilo que sempre fomos fiéis ainda têm substância. Novos dados surgem o tempo todo, é saudável fazer uma checagem de posicionamento de vez em quando”.
Nota: Sócrates e depois Platão, no século VI a.C, concluíram, que uma vida sem análise crítica não vale a pena. E que a compreensão dos dilemas éticos mais recorrentes nas relações humanas e com o meio figuraria como um possível caminho para uma presença mais consciente – e quiçá mais plena-no mundo.
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