Sessão Nostalgia

 Estamos chegando ou saindo?

Muitas vezes me descubro a pensar na vida como uma longa e irresistível caminhada, durante a qual me vou despedindo de coisas e de pessoas, morrendo lentamente, a conta-gotas, esvaindo-me como a areia de uma ampulheta. Despedindo-me ao nascer, do útero materno, iniciei uma longa procissão de adeuses, acenando triste partidas em todas as direções. Disse adeus a minha casa nativa; disse adeus aos caminhos pelos quais não tornei mais a passar; disse adeus a meus pais no dia em que, fatalmente, os vi pela última vez;disse adeus a tantos colegas quando, numa esquina qualquer do mundo, nos separamos sem pressentir  se jamais nos tornaríamos a ver.

Desenganos

Quando partimos no verdor dos anos da vida pela estrada florescente, as esperanças vão conosco a frente e vão ficando atrás os desenganos. Rindo e cantando, céleres e ufano, vamos marchando descuidadosamente. Eis que a velhice chega de repente, desfazendo ilusões, matando enganos. Então percebemos claramente quanto a existência é rápida e fugaz e vemos que sucede exatamente o contrário dos tempos de rapaz: os desenganos vão conosco a frente e as esperanças vão ficando para atrás.

Antônio Gaio Sobrinho

 

A criança que fui chora na estrada 

 

A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou; Mas hoje, vendo que o que sou é nada. Quero ir buscar quem fui onde ficou.  Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou a vinda tem a regressão errada. Já não sei de onde vim nem onde estou. De o não saber, minha alma está parada.  Se ao menos atingir neste lugar um alto monte, de onde possa enfim o que esqueci, olhando-o, relembrar,  na ausência, ao menos, saberei de mim, a, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar em mim um pouco de quando era assim.    Dia a dia mudamos para quem amanhã não veremos. Hora a hora.

Nosso diverso e sucessivo alguém desce uma vasta escadaria agora.  E uma multidão que desce, sem que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora. Ah, que horrorosa semelhança têm! São um múltiplo mesmo que se ignora.  Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo. E a multidão engrossa, alheia a ver-me, sem que eu perceba de onde vai crescendo.  Sinto-os a todos dentro em mim mover-me, e, inúmero, prolixo, vou descendo até passar por todos e perder-me.

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço o que sinto que sou? Quem quero ser mora, distante, onde meu ser esqueço, parte, remoto, para me não ter.

Fernando Pessoa