Foucault – Corpos Dóceis

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Dócil, adjetivo:

  1. Que se lida com facilidade; que é fácil de ensinar e aprende facilmente; manso: cão dócil.
  2. Que assimila muito bem uma orientação; que obedece sem oferecer relutância; obediente: tinha uma filha excessivamente dócil.
  3. Pouco usual. Que tem facilidade para aprender.

O Corpo Dócil é o primeiro personagem de Foucault, ele é um produto que está em todas as prateleiras de nossa sociedade, vem nas mais diversas embalagens e pode ser encontrado em praticamente todas as instituições. Ele é o corpo que foi trabalhado arduamente. Trata-se, enfim, do efeito esperado pelo poder disciplinar.

É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”

– Foucault, Vigiar e Punir

– retirado do livro Vigiar e Punir

O homem moderno nasceu no fim do séc. XVIII e já está para morrer, disse Foucault. Mas como nasce este homem que conhecemos hoje? Como se dá vida a este ser? Durante a era moderna, o poder descobriu o detalhe, o absolutamente ínfimo, aquilo que antes passava despercebido. Criou novas técnicas de dominação.

Até um pouco antes da Revolução Francesa, e a partir daí com cada vez mais força, a subjetividade se tornou algo que se fabrica, o poder age em cada indivíduo para fabricar corpos dóceis, o trabalha detalhadamente, sem folga, sem espaços. Como um origami, o poder disciplinar nos dobra até obter a forma que mais lhe apraz.

O corpo dócil se faz na união destas duas características: utilidade em termos econômicos e docilidade em termos de obediência política. A fórmula é simples: o corpo dócil é tão obediente quando produtivo. O soldado mais mortal e que obedece ordens mais prontamente; o aluno mais quieto e que tira notas mais altas; o trabalhador mais produtivo e menos preguiçoso; o doente mais criterioso no hora de tomar seus remédios e menos queixoso às dores do tratamento.

Está aqui o resultado, um corpo cindido, afastado de seu poder político, mas completamente ligado à maquinaria econômica.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”

– Foucault, Vigiar e Punir

O corpo se tornou alvo do poder, descobriu-se que ele podia ser moldado, rearranjado, treinado e submetido para se tornar ao mesmo tempo tão útil quanto sujeitado. Pouco a pouco foi dobrado pelo poder, de maneira sutil, através de várias técnicas de dominação: no espaço, no tempo, nas gêneses, nas composições. Não que esta criação seja inédita, as relações de força agem e agiram desde sempre, mas com a modernidade o corpo passou a ser dividido, separado, medido e investigado em cada detalhe.

O alvo muda: já não são tanto os indivíduos marginais ou irregulares, mas a classe dos trabalhadores”

– Foucault, Sociedade Punitiva

Se todo trabalhador é um possível malfeitor, se ele está sempre a um passo de cometer um delito, então deve ser treinado com diligência, deve ser vigiado constantemente, deve passar por reavaliações, reciclagens, para que se possa retirar o máximo possível desta engrenagem. Tudo começa desde cedo. Quanto mais dócil, mais dificilmente emperrará a máquina de produção. Tão reprimido quanto treinado, aceitará facilmente as coisas como são. Tão submetido quanto lucrativo, se esforçará para entrar no mercado de trabalho e vender sua força. Arte das doses: aumentar a lucratividade diminuindo o pensamento político e crítico.

Aparatos de produção e de reclusão juntos, amalgamados. O sinal de entrar nas celas é o mesmo sinal de fim de expediente e permissão para voltar para casa. No mesmo espaço encontramos divisórias e aberturas de fluxos. O encarcerado e o trabalhador se confundem, os dois estão presos e não sabem como escapar. Um por muros altos, outro porque foi condicionado a obedecer e não sabe fazer de outra maneira. O poder cria sujeitos que se curvam ao modo de vida capitalista e à sua maneira de existir.

O corpo é docilizado para se tornar mais uma peça na grande máquina de produção. E como qualquer produto de produção em massa, este corpo passa por vários estágios de confinamento até estar acabado: tudo começa com a família, depois é necessário ir para a escola, para aprender os primeiros rudimentos de obediência e produção; aos dezoito anos: quartel, aperfeiçoar-se em seguir ordens sem pensar; após toda a preparação, fábrica, produzir, trabalhar, ser lucrativo, ser eficiente.

Se ficarmos com a versão moderna: família/creche, primeiros anos de treinamento e adestramento; escola/faculdade, onde ao mesmo tempo se aprenderá um ofício e a melhor obedecer; escritório, momento de produzir, hora de ser alguém na vida, um membro útil de nossa sociedade. Caso alguma coisa dê errada: hospital, igreja, hospício, cadeia. Nada se perde, tudo se transforma.

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A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças dos corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) […] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada”

– Foucault, Vigiar e Punir

O poder separa o homem de si mesmo, afasta seu corpo de si mesmo e cria uma outra natureza que lhe sobrepõe, ou melhor, o substitui. Já não sabemos quem somos, sentimos que somos trabalhadores. Será? O poder não apenas reprime, e esta nem seria a parte mais importante, diz Foucault. Mais do que tudo, ele produz, ele cria corpos e mentes, exercita habilidades e ideias, capacita, conduz.

Isso se dá em várias esferas da sociedade, uma alimentando a outra, são linhas de força que entram em ressonância, não há um senhor rico e poderoso manipulando tudo, estão envolvidos políticos, padres, ricos, pobres, enfim, a sociedade como um conjunto de interesses e forças.

Enfim, os corpos dóceis são efeitos reais de uma sociedade disciplinar que produz indivíduos seriados. Ninguém escapa. A violência agora é à conta gotas, distribuída homeopaticamente ao longo da rotina. Tão imperceptivelmente que percebemos apenas o barulho cinza dos carros, aparelhos eletrônicos e máquinas registradoras acompanhando o silêncio mórbido dos olhares mortos dos outros corpos dóceis.

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Fonte: https://razaoinadequada.com › 2014/01/13 › foucault-corpos-doceis